Naquela tarde, foi assim que cheguei a casa: as roupas que nos protegiam pela manhã voltavam abraçadas à cintura, algumas dentro da pasta, junto aos cadernos e anotações da faculdade.
- Não vais à aula? - perguntou meu pai, cotovelos sobre o balcão, a folhar o jornal, cuidando o pequeno armazém que possuíamos.
- Não. Fico contigo. - respondi.
- Então me serve um café.
Meu pai, aposentado, alternava os dias entre a casa e o pequeno sítio que tínhamos no interior do estado. Meu pai, por toda a nossa existência, trabalhava assim: alguns dias em casa e outros fora, desde os tempos da “rádio-patrulha” até se aposentar como inspetor de polícia. Assim nos acostumamos. E sua presença era sempre sentida, mesmo quando não estava em casa. Quando voltava, nossos corações ficavam em festa, ouvindo suas estórias, contando nossas novidades. Minha mãe aproveitava a sua chegada para dar uma volta ao Centro de Porto Alegre, comprar alguma coisa pra casa, ver as novidades. Minha irmã também na faculdade chegava mais tarde.
Servi o seu café. Duas colheres de açúcar, uma pitada de carinho. Abraçados, contei a ele as novidades do curso. Que tinha provas em seguida, enfim, futilidades que se troca com quem amamos. Dei-lhe um beijo e fui estudar na sala, controlando os sons da casa, como um cão, atento aos sinais. Era sempre assim. Quando ficávamos em casa estávamos alerta para quem precisasse de nós. Fosse o pai, que se incomodava com o movimento no bar, fosse nossa mãe, mais acostumada com o corre-corre, mas também necessitada, às vezes, de auxílio.
De repente um reboliço.
Meu pai entra gritando:
- Duda, a arma!
Pegou o revólver que guardava na cômoda junto à cama e voltou correndo. Na porta que separava nossa casa do armazém deu um tiro, espantando os bandidos que tentavam assaltar-nos.
Atira e cai.
Só então percebo que está ferido. Os vizinhos, ao ouvirem os tiros, correm pra ajudar, colocando-o em nosso carro. Partimos para o hospital tentando manter acessa aquela chama de vida que lhe restava. Não houve o que fazer. Dali em diante, como num pesadelo, tudo pareceu perder o sentido. Voltei pra casa tomada pelos vizinhos zelosos e parentes que moravam perto.
E só penso em acordar.
Acordar deste sonho ruim.
Mas não havia como.
Era 19 de maio de 1988.
Aos 19 anos, numa tarde de outono, perdi meu pai. Meu querido pai. E não há um dia que sua presença não seja sentida, e sua saudade não seja doída.
Naquela tarde morria em mim uma parte que eu jamais soube explicar o que era. Meu pai era o esteio, o porto seguro, o aconchego. Um homem cheio de vida, amigo dos mais próximos, exemplo para a família. Que sentia prazer no que fazia. Com este homem jamais, em 19 anos, tive uma briga. Se não concordávamos em alguma coisa, dávamos de braços, respeitando a cumplicidade maior que pai e filho poderiam ter. Nunca ouvi de seus lábios “eu te amo”, mas jamais precisei também de ouvir, pois não tinha dúvidas de seu amor por nós.
E nós o amávamos. Todos nós. Amávamos aquele homem que adorava a vida simples e campesina, talvez buscando encontrar, dentro de si, o menino que um dia teve que crescer à força e sair de casa, procurando emprego e futuro na cidade grande. E na Grande Porto Alegre, criou seus filhos: eu e minha irmã. E teve a felicidade de vê-los conquistar aquilo que tinha como mais valioso: Educação! Foi esse o seu maior tesouro, a fortuna que nos deixou. Ele e minha mãe nos ensinaram a ter, acima de tudo, liberdade. Num ambiente onde a construção do caráter nunca acaba a mente tem obrigação de evoluir, de se formar, de voar.
Formamos nossas famílias, criamos nossos filhos, mas a mente não pára. Tem algo a dizer, tem uma obra a completar. A obra de um menino, nascido em Itapuã, no interior de Viamão, no interior do Rio Grande do Sul, um dia, sem querer, começou. E não pôde terminar.
Esta crônica foi apresentada na Rádio Antena 1 da RTP – Rádio e Televisão de Portugal – e selecionada para fazer parte de uma coletânea que será lançada ainda este ano em Portugal.
Coluna publicada em 11 de agosto de 2007.
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