domingo, 11 de maio de 2008

Histórias Mal Contadas – I e II

Já fazia algum tempo que Suvaco não via o Doutor Salles, mas sempre que o velho chamava, ele ia correndo. Mais que o respeito, Suvaco nutria um grande carinho pelo “Dotôr”. Desde que aos 14 anos, fora ajudar seu pai no cuidado dos jardins da mansão dos Salles. Depois virou “choufer”, quando completou 18 anos. Virou o homem de confiança do grande empresário, que vivia rodeado de políticos famosos, e outros nem tanto que só queriam se aproveitar do prestígio da família Salles. Mas acima de tudo gostava daquele homem, pois era o único que ainda lhe chamava pelo nome: Paulo Roberto.
Agora o doutor morava sozinho, num duplex perto da Vinte e Quatro de Outubro, com a empregada que cuidava dele e um faz tudo, o Aroldo, que fora o último empregado que sobrara depois que os filhos venderam a casa de Ipanema. Mas os Salles ainda eram importantes. Os três filhos escantearam o velho do controle dos negócios, modernizaram a administração das empresas e venderam a alma pra concorrência, em troca do status quo e tardes no Country. Ao doutor, restaram as lembranças e o fardo político. Nos bons tempos, diziam que “se o doutor não aprovasse, ninguém assumia nada”, de sub-gerente a ministro. Assim, todo mundo fazia questão de agradá-lo e essa intimidade com a política lhe rendera muitas amizades.
***
Foi o Darci, um alemão que trabalhava no IPH que colocou o apelido: Suvaco. Quando chegava com o pai, do serviço, ia no armazém e lá ficava, hipnotizado pela imagem da Philips Stabilimatic que o Zé tinha atrás do balcão. Com um pão de quarto debaixo do braço, esperando o Camisa 10, não deu outra: virou Suvaco mesmo! E com o tempo todo mundo começou a tratá-lo pelo apelido. Até sua mãe aderiu. E quando casou, o padre, que tinha lhe dado a primeira comunhão e a crisma quase casou o Sucaco, e não o Paulo Roberto, com a Cleci. Como não era de muita conversa, nunca retrucou, e muitas vezes a alcunha lhe salvou de levar uns safanões quando a patachoca dava geral na vagabundagem em volta do campinho.
- Esse não! É o Suvaco, pode soltar.
***
Suvaco chegou cedo, fez hora dando umas voltas na quadra e subiu pro apartamento na hora, com o doutor gostava, pontualmente.
- Entra, Paulo Roberto, entra!
- Pois não Doutor Salles.
- Esse aqui, meu rapaz, é um senador amigo meu, nós te chamamos porque ele precisa muito de um rapaz de confiança pra um serviçinho. Não tem outra pessoa capaz, eu disse pra ele. Só o Paulo Roberto!
- Estou às suas ordens doutor. Disse Suvaco, apertando a mão do senador que já engrenava as instruções num sotaque pra lá de nordestino.
- Meu querido, preciso de um favor do amigo.
- Pode falar...
- Então. Tenho uma pessoa muito necessitada de uns valores.
- Valores...
- De uma quantia financeira, mas infelizmente, não posso dar notoriedade à esta transação. Meu amigo Salles me falou de sua competência e discrição e acredito que não há pessoa mais capacitada que você para esta operação. Já comentei que é sigilosa?
- Deu a entender, senador.
- Então meu filho. Preciso que você leve esta maleta, com alguns dólares até o aeroporto e entregue à uma bela moça que vai desembarcar amanhã à tarde . É só entregar, não tem mistério. Ela vai se identificar, e estará te esperando próximo ao check-in.
- Ela se identifica e eu entrego a mala...
- A maleta...Isso ! Mas devo lhe pedir, a maior discrição.
- Sim senhor...
- E pra todos os efeitos, essa nossa conversa jamais existiu. Você não sabe de nada! Nem de mala nem de dinheiro!
- Eu não sei de nada... Nem de mala nem de dinheiro...
- Bravo! Isso mesmo. Posso contar com você?
Nisso o doutor Salles interrompe:
- Claro que pode. O Roberto Carlos é da minha confiança. É como se estivesse trabalhando pra mim. Não é meu filho?
- Se o senhor tá dizendo... Então tá dito...
***
O resto do dia Suvaco tirou de folga. Não que realmente trabalhasse. Desde que os Salles venderam as empresas que ele não tinha uma colocação estável. O que chegava mais próximo de uma ocupação descente era ajudar o Roldão na Ceasa, três vezes por semana, e ainda assim quando não fazia muito frio. Passou na casa da irmã e pegou uma camisa do Olavo, seu cunhado. Cor de abóbora. Era a senha para a entrega da maleta. Na hora concordara, mas nem se dera conta de que não tinha nenhuma peça daquela cor. Nem camiseta. Depois passou no Gringo e mandou baixar duas cervejas. Pagou com o dinheiro que o senador lhe adiantara pelo serviço. Até tomaria mais, mas lembrou que tinha que estar cedo no centro, para pegar a encomenda e rumar para o aeroporto. Em casa, as horas não passavam. Foi deitar, mas o sono não vinha. Não que estivesse preocupado com a carga a transportar. O que não saía da cabeça era um misto de orgulho com a deferência do velho doutor, com uma ansiedade por não falhar, não fazer feio pro velho. E as horas se empilhavam no relógio.
***
Paulo Roberto chegou ao aeroporto quase duas horas antes do horário combinado. Em sua fantasia de “Missão Impossível”, fez questão de se adiantar e estudar com esmero o ambiente da transação. Na mão suada a valise já se movimentava como se fosse parte do seu corpo. Ensaiou dez vezes o percurso até o check-in. A tensão começou a tomar conta do seu corpo e resolveu parar, podia estar dando bandeira. Deu uma olhada ao redor e resolveu esperar no banheiro, se recompor. O melhor talvez fosse só sair do banheiro na hora combinada.
Quando o relógio bateu onze horas Suvaco resolveu colocar em operação o plano do senador. A bela moça já deveria estar esperando no local estabelecido. Passo firme, Suvaco sai do banheiro em direção ao saguão, mas breca cinco passos depois da porta. Um sem número de policiais e repórteres de tv e jornal ocupa todo o saguão. Estático, Suvaco não conseguia dar um passo que fosse, suas pernas não obedeciam. A operação sigilosa dera errado. Alguém denunciara o “empréstimo” do senador.
- Você, de abóbora – disse um agente federal.
- Quem? Eu?
- É você. Sai daí, tá atrapalhando o trabalho policial, sai fora!
Empurrado com mais dois fotógrafos, foi retirado à força do saguão. Da área de embarque dos táxis viu a Polícia Federal prender um grupo de fraudadores de licitações públicas que iriam embarcar para o Uruguai. Pra dentro do aeroporto não voltou, resolveu abortar a missão e nos meses seguintes não foi mais localizado. Por mais que seus familiares e amigos procurassem notícias suas, não foi mais visto. Nem pra ex-mulher e os filhos deu satisfação. O Suvaco sumiu de vez.
***
Paulo Roberto reapareceu num hotel do litoral nordestino. E pelas peças que a vida nos prega vez por outra, deu de cara com o senador. O mesmo senador que três anos antes havia conhecido no apartamento do Doutor Salles.
- Paulo Roberto? Interceptou o congressista.
- O senhor deve estar me confundindo com alguém? Respondeu Suvaco, tentando escapar do confronto.
- Nunca esqueço quem me sacaneia. Cadê
o meu dinheiro? Seu filho de uma égua! Continuou o senador, segurando-o pelo braço.
- Que dinheiro?
- O da maleta!
- Que maleta? Respondeu Suvaco, com um ar debochado.
Neste instante o senador percebeu que era inútil continuar. Pelo combinado há quase quatro anos, aquela maleta jamais existira, e como disse o Doutor Salles, aquele rapaz era muito discreto e de confiança. Soltou o braço de Suvaco e deixou que ele tomasse distância. No meio dos hóspedes no mall, viu o outrora homem de confiança do Salles ir em direção à rua e embarcar num luxuoso carro importado.
No carro, Suvaco era esperado pelo motorista e um velho amigo.
- Com quem você falava no saguão?
- Com um conhecido, só um conhecido, doutor.
- Pode ir Aroldo. Pro aeroporto – ordenou o velho.
- Sabe, Roberto Carlos, por um momento pensei ter visto aquele nosso amigo senador.
- Que é isso Doutor Salles, é impressão sua.
- Pode ser. Mas nestes tempos de escândalos, quando vejo ele na tv, eu a vezes acho que nós fizemos um grande favor a ele, quando ficamos com todos aqueles dólares.
- O doutor pode ficar tranqüilo. Ele deve agradecer a Deus pelo fardo que tiramos de suas costas.


- Afinal, não se arranja gente de confiança em qualquer lugar. Não é Paulo Roberto?
Colunas publicada em 7 e 14 de julho de 2007.

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